Lembranças da minha infância

15 de fevereiro de 2017
Lembranças da minha infância



Desde muito cedo, minha mãe me ensinou a cozinhar. O fogão  lá de casa era antigo; alto, e eu precisava botar um caixote para subir e alcançar a altura das panelas. Eu teria que mexer um caldeirão de cocada, até dar no ponto. Além, de cocada, tinha ainda outras coisas para fazer...
Na despensa ficava um armário muito alto, onde minha mãe botava uma panela com lombos temperados, para cozinhar e comer durante a semana.
Pois bem, o gato da vizinha eu não sei como, subiu no armário atraído pelo cheiro da carne, e eu só ouvi o tombo da panela caindo. Corri para ver e lá estava a panela quebrada, e o gato, sem sair do lugar. A carne, essa foi pra todos os lados.
Peguei a vassoura e tentei tirar o gato do lugar, mas ele miava muito e mal deu para chegar até a porta dos fundos. Foi quando Dona Dete, a dona do gato, me viu com a vassoura na mão e aí, pronto! Foi aquele alvoroço todo.
- Você espancou meu gato! Você vai ver só, quando sua mãe chegar! -gritava ela!Não adiantou nada eu tentar explicar como as coisas aconteceram. Foi tudo em vão. E novamente lá se foram duas dúzias de bolos de palmatória, desta vez doeram muito mais, pois, eu não era verdade! Fiquei com raiva de D. Dete - isso não vai ficar assim! - pensava eu...
Certo dia,vi a lavadeira da vizinha tirando a roupa do varal, e juntou toda ela em um lençol aberto, para assim fazer uma trouxa. Era muita roupa! Naquele tempo se usava muita colcha de Rechelieu, toalhas de mesa e tantas outras coisas. Os ternos dos homens eram dos finos, e as camisas de cambraia. Pois não é que a lavadeira saiu e deixou a trouxa em cima da cisterna? Que fiz? Olhei para os lados, vi que não tinha ninguém por perto, afastei a tampa da cisterna e empurrei a trouxa de roupa, buraco abaixo. Saí dali correndo, com o coração quase saindo pela boca.
Nunca acharam as tais roupas!
Passados muitos e muitos anos, já morando em Jequié, casada, com dois filhos, deveria já ter uns quarenta e cinco anos de idade mais ou menos, não é que um dia eu a vi na rua, a dita cuja dona do gato? Algo nos olhos dela me chamou a atenção.
Certas coisas da infância a gente nunca esquece. Era um olhar como se estivesse sempre com raiva de alguma coisa. Além do mais, ela tinha o dedo polegar da mão esquerda dobrada para dentro. Aí, eu me aproximei, parei e perguntei:
- A senhora é Dona Dete que morava em Ipiau?
- Sou sim. E você, quem é? - disse ela.
-Sou Lucinha, aquela menina que a senhora acusou de ter descadeirado seu gato, lembra?-ela me olhou com espanto, bem dentro dos olhos e disse:
-Lucinha, filha de Dona Maria José?
-Essa mesma! - respondi. E aí, vieram aquelas perguntas de praxe: como eu a reconheci, se eu já tinha casado, se tinha filhos... Respondi tudo e disse:
Pois bem, vou aproveitar a oportunidade para lhe confessar duas coisas: eu não descadeirei seu gato. Foi uma gamela que caiu em cima dele. Agora, quanto a sua trouxa de roupas, fui eu que com raiva da senhora, joguei dentro da cisterna, pois a senhora fez minha mãe me bater sem motivo. A mulher tornou a me olhar dentro dos olhos e disse:
-Menina, foi você? Eu levei muito tempo procurando nas redondezas, só pra ver se via alguém vestido com as roupas, ou mesmo se estavam penduradas em um varal de alguma casa! Mas, nunca vi nada....
- Pois é! - exclamei - e não lhe peço desculpas por isso! Só queria que a senhora soubesse que fui eu. Ela me abraçou, e terminamos as duas chorando ali na praça, junto a uma banca de revistas.


  LUCIA MARINIELLO

NOTA: A autora decidiu não preservar sua identidade!

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